segunda-feira, 30 de julho de 2012

AUTOBIOGRAFIA autorizada

I

1964-1969 estoril
E cascais o mar
Lenços nas cabeças
Das senhoras carros
Compactos e redondos
Com frisos de metal
Um sol luminoso
A minha pequenez os cães 
Inocência.


II

1970-1979 cascais
E estoril as saias
Das mulheres
Jovens carros esguios
E descapotáveis
Um sol luminoso
Guitarra e voz
Inocência
Primeira visão da morte.


III

1980-1989 estoril
E cascais os corpos
Das raparigas carros
Velhos ferrugem
Um sol luminoso
Os cães a viagem 
Inocência.


IV

1990-1999 estoril
E cascais a minha mulher
Todas as mulheres a vida
O mar os meus livros os meus
Carros a adultês
Um sol luminoso
O desengano.


V

2000-2012 cascais
A morte a vida os carros
Os carros os carros
Um sol luminoso
Os cães
A paz.

ler(n)os outros #8

À mão
Esquece
(ética)
Intuição
Mote para uma folha que caiu, amarela, de uma árvore
Pescadores da Torreira (Cabrita Alta)
Poema Visual -- Ovíparo
Um Dia Parti

sexta-feira, 27 de julho de 2012

COMÉRCIO

Dava-lhe os poemas que escrevia.

Toma dizia fica com eles lê
E ela incauta não sabia
Que trazia água no bico es-
-Se injusto comércio da poesia.
27-VII-2012

quarta-feira, 25 de julho de 2012

INTERIOR EM NICE

Tudo me conduz a nice
O mar
O passeio dos ingleses sobre o mar
A varanda sobre o passeio dos ingleses sobre o mar
Essa portada de ripas verdes entreaberta a recordar
A maresia da infância.

Tudo me leva a nice
E a esse balcão onde
Me aguarda não sei
Se o amor não sei
Se a morte.

Mas tudo me conduz a nice.
23/25-VII-2012




sexta-feira, 20 de julho de 2012

TÁCITO

Ela empina-se em silêncio
Cruzamos o olhar

O rio segue o seu curso.

Antologia Improvável #6 - Artur do Cruzeiro Seixas

Cada poema
cada desenho
são os marinheiros que navegaram na minha cama
são uma revolução não só gritada na rua
são uma flor nascendo nos campos
e é o luar e a sua magia
e é a morte que não me quer
e é UMA MULHER
surpreendente como um marinheiro
luminosa como a palavra REVOLUÇÃO
tão natural como o malmequer
tão metafísica como o luar
tão desejada como a morte hoje
A MINHA MÃE
infinita e profunda
como o mar.

Artur do Cruzeiro Seixas, Obra Poética, vol. I, Vila Nova de Famalicão, 2003.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

EL OTRO LADO

A fronteira do inferno com a terra do leite e do mel
O paraíso entrevisto a expressão alvar
Dos ingénuos.

Mas o medo no cândido sorriso
Ignorante dos mastins à entrada
Do céu.

Arrancam-lhe a carne por um níquel
Descarnado e no cachaço palmadas
Condescendentes.

O espanto da perna amputada
Nos olhos.


segunda-feira, 16 de julho de 2012

INCÊNDIO

Saboreias a vida foges
Aos compromissos sabes
Que outra não terás vives
Cada dia
             O mais feliz da tua vida.

A impiedade duma sirene diz-
-Te: a vida não é assim.

12-VIII-2012

quinta-feira, 12 de julho de 2012

FALA DO HOMEM FALHADO

Pedes-me palavras
(Só tenho as sílabas do desespero para te dar)
Pedes-me amor
(Nada mais vislumbro senão carne faminta a saciar)

Pedes-me a imortalidade
E eu ergo o muro da descrença de alguma vez te ter.

28-II-2008

quarta-feira, 11 de julho de 2012

CERTIFICADO DE INABILITAÇÕES

A vida é uma comédia
E eu não sei representar.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

RETRATO

A luz própria que se desconhece
O modo aristocrata malgrée elle
A voz suave que não se impõe
O drapejar violeta que oculta as formas
Os olhos meigos atrevendo-se a não mostrar do que são capazes

O seu je ne sais quoi.

ler(n)os outros #5

canta o teu canto mais doce

Crepúsculo dos Instantes

então ele disse que era deus

Íris

Sigilo

Velho amigo

domingo, 8 de julho de 2012

Antologia improvável #2 - Rui Knopfli

ARDE UM FULGOR EXTINTO

Arde um fulgor extinto
no longe da tarde agoniada.
Não me pesaria tanto
a caminhada se, em lugar do dia,
no seu extremo achasse a noite.

Exacta e concisa é a claridade.
Não mente à luz o que a noite
ilude. Terrível destino
o de quem é nocturno à luz solar.

Não vos ponha em cuidado,
porém, este meu penar:

são palavras e não sangram.

Rui Knopfli, Mangas Verdes com Sal (1969) / Obra Poética, Lisboa, 2003.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

«CHAPELARIA» DE AUGUST MACKE (1914)

 Alheada  
Vê as novidades da estação
Pensando no homem distante.

Não o sabe atolado
Nesse mesmo instante
Numa trincheira da flandres. 

Alheado
Vê um capacete francês
E dispara.
5/6-VII-2012


segunda-feira, 2 de julho de 2012

FIM DE TARDE

Pássaros em bando a quem tivessem aberto as gaiolas
Frescas como a aragem que corre após um dia de trabalho
As lojistas passam em silêncio entrando
No fim de tarde de junho com os sacos
Cheios da tralha que só as mulheres usam
Algumas de óculos escuros outras
Cara a descoberto e cabelo apanhado
Vestidos de alças
Ombros nus que apetece beijar.

E eu
Vendo o desfile destas jovens mulheres
Chego a pensar que a vida é bela
Esquecendo por momentos os salários curtos
O horizonte estreito das suas existências
O futuro sem brilho que as espera.

Nada disso tem importância neste fim de tarde quente de junho
Soprando uma aragem que atinge em cheio rostos inexpressivamente belos
Tocados pela luz quase rasante de um sol-pôr
Por entre as frestas de casas muito velhas
Marcadas pelo verdete do inverno

Sintra, 27-VI-2012