sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

OBSIDIA

Houve tempo em que julguei não ter tempo para ler   a minha máxima ambição foi então a de dispor de tempo para ler   uma página por dia   uma página de boa prosa   uma pauta de sinfonia aquiliniana   um fresco dum vasto painel de paço d'arcos (joaquim)   ler ler   era só o que eu queria   na paragem da carris   podia ser   ganhei o hábito de fugir ao almoço para ler ler ler   voltado para a parede sem aturar chatos e ler a sós com o meu livro   depois deixei de saber falar   cada encontro um contratempo   uma irritação   um aborrecimento   ler ler leer.

Mas pouco para dizer   e nada para escrever.

30-X-2006

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

GENEALOGIA (3)

No meu sangue há homens do mar
Celtas de olho azul vindos em balsas
Da verde erin.

Tiveram poiso por séculos na costa norte 
Mas logo se lançaram a esse mar
Acima do árctico
E desceram a sul
À aventura e à rapina.

Celtas de olho azul
Branco o loiro da barba
Neve da terra nova.

Celtas de olho azul
Roupa colada ao visco do corpo
Calor húmido dos trópicos.

Homens e mulheres da pesca e do peixe
Da costa nova à capital do império
Onde assentaram arraiais os filhos dos arrais.

Em lisboa se fixam
Trazem despojos vivos
Dos restos d'além-mar
E com eles se misturam.

No meu sangue
Tudo isto e ainda mais.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

DÁDIVA

Levou-lhe a chávena
À boca   uma dádiva
Assim parecia.

Depois de lhe provar
O mel  outra coisa
Já não queria.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

GENEALOGIA (2)

O meu sangue correu pelo atlântico
Entre barcos negreiros de costa a costa
Companhias de navegação do norte ao sul
E do sul para o norte.

Há no meu sangue alguém subtraído
Aos pais aos filhos ao amor da terra
Capturado por tribo inimiga
Prisioneiro de guerra
Ou de cilada armada.

Um negro
Robusto que bastasse para sobreviver à travessia do oceano
Grilhetas nos pulsos nos tornozelos no pescoço e na alma
Ou uma negra
Da costa dos escravos ao mercado da baía
Ou qualquer parte do brasil onde se vendesse gente como
                                                                           [mercadoria.

O meu sangue negro perde-se numa noite secular
Até um português do meu sangue branco (branco?)
Trazer uma bisavó mulata com sua mãe liberta
A bisavó que hasteava a ordem&progresso à varanda
Quando se pilhava e matava na lisboa republicana.

África américa europa américa europa
O meu sangue fez o triângulo do mar.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

César Franck

Empolgante monotonia
Deslumbrante melancolia.


Sinfonia em Ré Menor. 3. Allegro non tropo (Otto Klemperer)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

GENEALOGIA (1)

No meu sangue há
Comerciantes austeros de suíças brancas e longas
Relógios de cordão de ouro e ar respeitável

(Talvez o fossem)
Um ar que se permitia pendurar-se
Nas paredes de pé direito muito alto
Em casas do século dezoito.

Trataram na ribeira das naus do que chegava do brasil da índia e
                                                                               [das partes de áfrica
Alguns deixaram as mulheres e descobriram no regresso filhos
                                                                    [com treze meses de gestação
Alguns deixaram as mulheres e descobriram-se pais de outros
                                                                        [filhos em paragens distantes
Perdoai-lhes senhor
Que todos sabiam o que faziam.

Foram vizinhos do bernardo soares
Sem que o notassem
Estiveram cercados à fome pelos castelhanos em mil trezentos e
                                                                                    [oitenta e quatro
Circularam em contágio de curiosidade entre o carmo e o arsenal
                                                                                [no vinte e cinco de abril
Sem espalhafato que a sua política era o trabalho
Vaguearam doidos varridos quando o grande terramoto lhes
                                                                                    [ruiu bens e família
Sobreviveram como puderam aos exércitos de bonaparte e à
                                                                                    [tropa de beresford.

Em lisboa há séculos
Pergunto(-me) o que são e de onde vieram.

Prosperaram e caíram
O triunfo não era da sua natureza
Acertavam quando calhava para tudo se desconjuntar na geração
                                                                                      [seguinte
Cabeças no ar e mau vinho
Importação de fruta exótica e lugares na praça da figueira
Prédios no bairro alto e campo de ourique habitação ao rossio
Cruzaram-se com o eça quando ia visitar os pais chegado de paris
Mas também não deram por isso.
Já ninguém mora nas casas pombalinas e o soalho deixou de
                                                                                      [ranger.

Desde então a família circula dispersa-se e desfaz-se.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

CASTANHO (CORES & NOMES)

A beira é castanha   entre bosques e largas extensões de terra-de-ninguém.

Digo beira   e penso em aquilino.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

CÃO

Os dias passam por ele
Sem que ele dê pelo passar dos dias por ele
Adoece e não sabe que é o fim
Abana a cauda
E sucumbe
          Ao tiro no crânio
Sem espanto
          À injecção letal
Em paz.


                                                                                                                      
27-I-2003

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

BRANCO NO BRANCO

A vida até me correria bem   não fora a morte às vezes pairar.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

BICHANO

Serias um gato
Se fosses bicho.

Um gato a roçagar
Me as pernas   melífluo
A saltar – miau – para o
Colo de encontro ao
Meu peito a ronronar
Descarado
           Imperial
                    Bichano
                             Gata.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

LOVE STORY

Já nem sabe há quanto tempo a não pode amar.

sábado, 3 de dezembro de 2011

"AZNAR, BUSH E BLAIR"

Quando eu era jovem, as massas industriaram-me na poesia
                                                                         [popular:
SOARES LADRÃO / ROUBA O PÃO
Alertavam-me as paredes
Com a força das convicções
E dos erros ortográficos.

Por vezes os versos eram brancos
Embora vermelhos
Por vezes eram brancos.

Assim o muro da recta do dafundo:
SOARES LADRÃO AMDA A ROUBAR O DINHEIRO DO POVO GATUNO
                                                              [VAI PARA A RUA JÁ!
Podíamos ler nos idos de 70
E até algum 80.

Ainda hoje a poesia popular me persegue.

3-VII-2003
*palavra-de-ordem na manifestação contra a guerra no Iraque:
"aznar,bush & blair / esta guerra ninguém quer!"

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

EU QUERERIA ESCREVER POEMAS

(atraiçoo Alba de Céspedes)

Eu quereria escrever poemas   à noite
E não posso.
Tenho de traduzir os textos
Publicitários
Dum creme de beleza.

Vejo pessoas   rapazes
Que não são aqueles
Que desejaria ver.
Os outros   não os conheço.

Converso com raparigas   na cantina
E dizemos coisas
Idiotas
Que não merecem ser ditas.

Tenho medo de habituar-me
E seguir assim   até à morte.

[tirado de Alba de Céspedes, Chansons des Filles de Mai, aux Éditions du Seuil, Paris, 1968 - original aqui

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A VIDA SUSPENSA

Por duas horas puseram a vida entre parênteses.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Y

Y
Eu   de Sylvia
A sublime.

Subliminarmente
Sublimo
A.

A PALAVRA INESPERADA

Do estômago sobe-me a palavra inesperada
Entre a língua destravada e o palato força-me
A boca desabusada   desesperada
Rasteira-me a mão e cai
Sobre o papel
Estatelada


13-VI-2003 /
/ 10-XII-2005

domingo, 27 de novembro de 2011

ANIMAIS

Animais
No silêncio com que comemos.

Animais
Na marcação do território.

E animais   desafiados por um olhar.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

RETRATO DE ANTERO DE QUENTAL POR COLUMBANO (1889)

Camões póstumo de outra crise
Agonia do mesmo império   máscara de fim
Génio inconsiderado   santo impiedoso
Inconsolado e tenebroso   órfão da ideia
Da vida viúvo.


(alterado, 29.XI.2012)












Columbano Bordalo Pinheiro, Retrato de Antero de Quental, 1889
Museu do Chiado, Lisboa


terça-feira, 22 de novembro de 2011

AMARELO (CORES & NOMES)

O alentejo é amarelo   amarelo a perder de vista com fieiras de girassóis de pescoço esticado em direcção ao sol.

Digo alentejo e penso em manuel da fonseca   esse maltês.

sábado, 19 de novembro de 2011

3 VISÕES DO TERROR

"O terror não chora."
Camilo Castelo Branco

Africanos a bordo dum navio negreiro   chegados a porto deconhecido.  

Índios em quotidiano de reserva   juntando fragmentos estilhaçados duma ancestralidade perdida.  

Espectros silenciosos de judeus nos campos de extermínio nazi   aguardando a entrada de
                                                                                                  [tropas aliadas.

(retocado
1.ª postagem: 24.II.2008)

POR MÃO PRÓPRIA

Não te afastes   não fujas   não desistas.

Há uma escrita que se extingue
E uma alegria que se esvai
Se te afastares   se fugires e desistires   de mim.

refazer

A partir de hoje, isto é refeito, a escrita é reescrita.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

OCORRÊNCIA

Perdi o lápis no mar do guincho.

21-IX-2006